Preconceito Impacta Diagnóstico e Tratamento de Câncer em Pessoas Trans

Desafios na Saúde da Comunidade Trans

Erick Venceslau, um analista de mídias sociais, recebeu uma notícia devastadora há pouco mais de um ano: um nódulo em seu seio era, na verdade, câncer, e de um dos tipos mais agressivos. Este diagnóstico, embora alarmante, se tornou um ponto de virada em sua vida, levando-o a assumir sua identidade como homem trans. ‘Foi um momento de grande reflexão para mim. Eu percebi que estava adoecido por tentar esconder quem eu realmente sou’, revela.

O estigma e a discriminação em torno da sua identidade afetaram sua saúde. Erick, que evitava consultas médicas por medo de ser maltratado, só buscou tratamento quando já tinha um tumor de três centímetros. ‘O sistema de saúde não é acolhedor para pessoas da comunidade LGBTQIA+. Isso me afastava do cuidado que eu precisava’, desabafa.

Essa realidade é compartilhada por muitos na comunidade LGBTQIA+. Maria Julia Calas, presidente regional da Sociedade Brasileira de Mastologia no Rio de Janeiro, aponta que a população trans enfrenta preconceitos não apenas de pessoas comuns, mas também de profissionais de saúde. ‘Muitos não sabem como tratar adequadamente essas pessoas, resultando em falta de cuidado e de informações sobre prevenção e rastreamento de câncer’, explica.

Para abordar essas questões, Calas se uniu à oncologista Sabrina Chagas para criar um guia direcionado a pacientes LGBTQIA+, intitulado ‘Nosso Papo Colorido’, que será lançado em breve. O projeto busca providenciar informações essenciais sobre saúde e prevenção de doenças oncológicas para este público, que frequentemente se sente excluído do sistema de saúde.

A Importância da Educação em Saúde

Sabrina Chagas destaca que o preconceito institucional e a falta de protocolos específicos para pessoas trans são barreiras significativas no acesso ao tratamento oncológico. ‘Embora a oncologia tenha avançado, ainda há lacunas no atendimento a populações marginalizadas’, enfatiza. Erick, após a remoção do tumor, gostaria de iniciar a terapia hormonal para realizar modificações corporais, mas se depara com a incerteza sobre a viabilidade disso com seu oncologista.

Esse dilema é comum. ‘Eu não sou o único homem trans que tem câncer de mama. Já deveriam existir estudos e protocolos que considerassem nossa realidade’, lamenta Erick. Para ele e muitos outros, a falta de informação e acolhimento pode levar a um diagnóstico em estágio avançado, quando o tratamento se torna mais complexo.

Calas e Chagas alertam que homens e mulheres trans devem ser informados sobre os riscos de câncer que podem não ser evidentes. Por exemplo, mulheres trans também podem desenvolver câncer de próstata e, embora a terapia hormonal possa reduzir este risco, não o elimina totalmente.

A detecção precoce é crucial. Para homens trans que não realizaram mastectomia, a mamografia é necessária, assim como o rastreio de HPV para todas as pessoas com útero. Maria Julia destaca a dificuldade que muitos homens trans enfrentam nas clínicas ginecológicas, que normalmente não estão preparadas para atendê-los de maneira acolhedora: ‘Ambientes que reforçam a feminilidade muitas vezes fazem com que esses homens se sintam deslocados e não respeitados.’

Novas Diretrizes e a Necessidade de Acolhimento

A Sociedade Brasileira de Mastologia está desenvolvendo diretrizes de rastreio para câncer de mama na população trans, em parceria com entidades de ginecologia e radiologia. O documento deve ser lançado no início do próximo ano e poderá servir de modelo para outras áreas da saúde.

As especialistas enfatizam a importância de um tratamento que respeite a identidade de gênero dos pacientes. ‘Um atendimento inadequado pode afastar as pessoas do cuidado e do tratamento necessário’, advertiu Maria Julia. Erick também ressalta como o apoio emocional e social foi vital em seu tratamento: ‘80% do meu sucesso se deve à medicina, mas os 20% restantes vieram do apoio de pessoas nas redes sociais. Esse suporte foi transformador para mim’.

A situação de Erick e de muitos outros na comunidade LGBTQIA+ destaca uma necessidade urgente de mudança no sistema de saúde. A educação e a sensibilização dos profissionais são fundamentais para garantir que todos, independentemente de sua identidade de gênero, tenham acesso a um atendimento justo e eficaz.