O Ministério Público Federal do Acre (MPF) moveu uma ação civil pública visando a suspensão de uma resolução recente do Conselho Federal de Medicina (CFM), que impõe restrições severas ao atendimento médico voltado a pessoas trans, com particular atenção às crianças e adolescentes. A divulgação dessa medida ocorreu nesta segunda-feira, dia 16, através do procurador regional dos Direitos do Cidadão no Acre, Lucas Costa Almeida Dias. A proposta do MPF destaca que a resolução do CFM não apenas promove a discriminação, mas também potencializa a violência contra essas populações vulneráveis, tornando o acesso a cuidados de saúde abrangentes e adequados ainda mais premente.
No contexto atual, o Brasil mantém a triste posição de ser o país com o maior número de homicídios de pessoas trans no mundo, o que se agravou em 2023, quando foram registradas pelo menos 230 mortes violentas de indivíduos da comunidade LGBTI+. Dados alarmantes indicam que uma pessoa desta comunidade é assassinada a cada 34 horas no Brasil, um reflexo da urgência em garantir proteção e acesso igualitário aos serviços de saúde, que são fundamentais para o bem-estar mental e emocional.
A ação do MPF é respaldada por uma quantidade significativa de pareceres técnicos que criticam a nova resolução do CFM. A Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (SBEM), juntamente com outras quatro associações médicas, manifestaram publicamente sua contrariedade a essa norma, ressaltando a segurança e a eficácia dos procedimentos disponíveis. Eles alertam sobre os danos que a postergação dos tratamentos pode acarreter sobre a saúde mental de jovens trans, que muitas vezes enfrentam condições graves, como depressão e ideação suicida, quando não podem acessar os cuidados de que necessitam.
Profissionais de centros especializados, como o Ambulatório Transdisciplinar de Identidade de Gênero e Orientação Sexual (Amtigos) do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (USP) e o Programa Aquarela da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), afirmaram que a resolução do CFM desconsidera a vasta literatura científica existente e os protocolos rigorosos que já são aplicados em diversos serviços de saúde no Brasil. Eles refutam a justificativa do CFM, que se baseia em alegadas altas taxas de arrependimento relacionadas a procedimentos de transição de gênero; segundo estudos recentes, essas taxas são inferiores a 1% e frequentemente relacionadas a fatores sociais, como pressão externa, em vez de insatisfação genuína com a transição.
A Resolução n. 2.427/2025, que revoga a normativa anterior, traz mudanças significativas que afetam o tratamento de pessoas transgênero. Uma das principais alterações refere-se à proibição do uso de bloqueadores hormonais em crianças e adolescentes trans, uma prática que, de acordo com associações como a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) e a SBEM, é considerada segura, reversível e vital para preservar a saúde mental dos jovens. O MPF enfatiza que essa proibição é discriminatória, visto que os mesmos medicamentos estão liberados para tratar casos de puberdade precoce.
Outra mudança relevante diz respeito às restrições para o início da terapia hormonal, que passou a exigir que apenas aqueles com 18 anos ou mais possam iniciar o tratamento de hormonização cruzada. Além disso, a norma determina que os pacientes devem passar por acompanhamento psiquiátrico e endocrinológico por, no mínimo, um ano, o que, na prática, eleva a idade mínima efetiva para começar o tratamento para 19 anos. Essa imposição contraria as demandas de 171 grupos de defesa dos direitos humanos e associações profissionais, que ressaltam a necessidade de respeitar a autonomia dos pacientes sobre suas escolhas de saúde.
Por fim, a resolução também estabelece que procedimentos cirúrgicos de afirmação de gênero só podem ser realizados a partir dos 21 anos. O MPF argumenta que essa medida infringiria a autonomia do indivíduo em relação ao próprio corpo, desrespeitando a maioridade civil estabelecida aos 18 anos. Essa situação gera um impasse eticamente problemático, especialmente considerando que, de acordo com decisões do Supremo Tribunal Federal (STF), essa maioridade também permite a alteração do nome e gênero nos registros civis. A batalha judicial se concentra, portanto, na proteção de direitos fundamentais para pessoas trans e na busca por um sistema de saúde inclusivo e respeitoso.